22 de junho de 2009

A leveza e o peso

Passou a língua sobre os lábios para umidecê-los. Tudo estava no mesmo lugar: a escrivaninha, a cama, a estante cheia de livros... Caminhou devagar, as pontas dos dedos, pendentes, tocaram a extremidade da pequena mesa sobre a qual estavam a velha máquina de escrever, a caneca suja de café, o cinzeiro, papéis, rascunhos... Caminhou até as prateleiras, e observou um por um os livros que estavam ao alcançe de seus olhos. Quantas histórias havia? Gostava de imaginá-las: tocando a lombada de cada livro tentava ler os títulos na penumbra, e assim engendrava as histórias. Ele costumava chamá-la de Lolita quando se conheceram. Tempos depois, foi-lhe explicar o motivo: como a precursora de todas as ninfetas modernas, ela tinha a natureza dupla, a mistura da infantilidade terna e sonhadora com uma espécie de estranha vulgaridade. Era também a labareda em sua carne. Sua alma. Sua lama. Costumava também chamar-lhe de Mon Petit Oiseau, nome que ela se deliciava ao ouví-lo sussurar, imaginando o que poderiam significar aquelas três palavras. Como um pai zeloso, contava-lhe as intermináveis histórias de todos aqueles livros até que ela adormecesse. Mas não eram contos de fadas. Quando ela, fatigada pelos esforços de proporcionar-lhe prazer, semicerrava os olhos prestes a cair num sono profundo, ele repetia uma série de contos sobre mulheres nuas, açoitadas em quartos de paredes vermelhas.
Mas agora ela estava ali, de volta àquele quarto, em frente à mesma prateleira empoeirada. O que havia mudado era ela. O vestido justo, os sapatos de salto, os lábios e olhos pintados, muito negros. E sua inocência? Ela perdera ali, naquele mesmo lugar, mas não no momento em que ele a penetrou sem se preocupar com a dor, sem se preocupar com as lágrimas nem com os protestos dela. Ela perdera o que tinha de belo: a Leveza. Tinha se tornado grave, austera. Perdera a capacidade de se admirar com as coisas ao seu redor.
Mas e ele? Também mudara? O que ela via era o quarto, como uma imagem parada no tempo, congelada. Fotografia desbotada, amarelada como o pequeno facho de luz que penetrava pelo vidro sujo da janela. Teve a impressão que nada ali tivesse sido movido. Nem ele, sentado na cama em meio aos lençóis desgastados. Imóvel. Ele tinha esta capacidade de permanecer; às vezes somente os olhos se moviam para acompanhar os movimentos dela, dos dedos deslizando pela lombada dos livros. A lentidão o irritava. Detestava quando ela tirava a roupa, peça por peça, dobrava, colocava sobre a cadeira, o casaco no respaldo, para não amassar. Não, ele não mudara, continuava o mesmo. O mesmo homem que tomaria o conhaque barato, se despiria sem desabotoar a camisa e a penetraria antes de ela estar completamente pronta, sem se importar com o prazer dela, sem se importar com a dor.
Ele era o contraponto.
Percebera, por fim, que a brutalidade dele fazia com que ela recuperasse a beleza. Era o contraste que a tornava leve. Ele era o peso, a rudeza.
Ela se convencera da suavidade que trazia àquele momento. Então se despiu, fechou as cortinas e antes de se deitar, pegou um livro na estante, a esmo. A insustentável leveza do ser.

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